Ato XIII - Mendigos, sábios e Iluminados
Uma magnífica aurora aurirrósea desponta no céu atrás da montanha acordando Jonas, salpica seus olhos com um espetáculo sublime, diante do qual aqueles banais sobrados parecem diminutos e seus problemas ainda mais ordinários e insignificantes. Pensa em acordar Ana mas o sorriso nos seus lábios parece emoldurar a arte celeste com sua doçura e ele decide não incomodá-la. - Se há alguém que merece um pouco de paz é essa garota. - diz Jonas. Observa o cume próximo que antes se escondia na noite e percebe que lá do seu topo poderia encontrar um caminho que o leve até o porto e, de lá, de volta para sua terra, para bem longe daquela ilha maluca. Jonas arruma o papelão que protege Ana do sereno, dá uma respirada profunda para ganhar coragem e inicia o périplo, umas boas horas até o alto da montanha, onde encontra apenas uma árvore e um abutre.
JONAS
- Ah, não! Que azar o meu! Deixo para trás um bando de abutres e o que eu encontro aqui em cima? Um abutre de verdade! - Reclama Jonas, decepcionado.
ABUTRE
- Um verdadeiro abutre. - Repete a voz, baixa e ríspida.
JONAS
- Hein? Quem está aí?!? - Jonas salta de susto e o seu coração quase sai pela boca.
ABUTRE
- Quem está aí? - Repete novamente a voz, que parece vir da árvore onde está o abutre, que permanece imóvel, pousado em seu galho.
JONAS
- Mas será que… eu estou ficando louco ou você é algum tipo de papagaio gigante? - Pergunta Jonas para o abutre, aproximando-se lentamente e tendo seus movimentos acompanhados pelos grandes olhos negros do abutre. - Vo… vo… você falou comigo?
ABUTRE
- Croááá! Mas é claro que falei! Quem mais poderia ter sido? Só estamos nós dois aqui no alto desta montanha... ou você está vendo mais alguém? - Indaga o abutre, abrindo as asas e mostrando toda a sua enorme envergadura. Jonas se assusta e cai, escondendo-se atrás da árvore.
JONAS
- Meu Deus! Um abutre falante! - Apontando assustado para a ave gigante.
ABUTRE
- E você é um menino muito tagarela… Croááá! Estamos quites. - O abutre dá uns pulinhos curtos em direção a Jonas e pergunta, desconfiado: - Diga-me, garotinho, o que você quis dizer com deixei para trás um bando de abutres? Hein?...
JONAS
- Sinto muito se eu o ofendi, senhor abutre, não foi minha intenção. Eu me referia às pessoas lá em baixo, no vale, sempre querendo roubar ou tirar proveito umas das outras… sei lá, eu usei uma expressão de linguagem... sabe como é, eles me lembram um, ah… bem… um…
ABUTRE
- Abutre? É isso? - Pergunta, aproximando a cabeça pelada na direção de Jonas e destacando seu alvo colar de penas na base do pescoço.
JONAS
- Simmm… desculpe. - Responde timidamente, envergonhado.
ABUTRE
- Então, para você, rapazinho, esta ilha está cheia de... Croááá! Abutres? Pois eu lhe digo, meu amigo, é você que se deixa enganar por palavras doces e bonitas.
JONAS
- Não entendi.
ABUTRE
- Esta ilha tem sim abutres, mas também tem muitas outras criaturas: tem mendigos, homens sábios e até líderes iluminados... mas o que você não percebe é que caiu no conto mais antigo de todos e foi enganado com títulos e palavras bonitas... Croááá! - Grunhe alto e retorna para a árvore.
JONAS
- Mas isso não é nenhum conto! Abutres, mendigos, e por ai vai, são todos fáceis de entender. De onde eu venho, os abutres picam a carniça e os ossos dos mortos. É repugnante! (Diz, torcendo o nariz) Os mendigos são pessoas simples, os sábios são inteligentes e divertidos! Já os iluminados, bem, nunca vi algum para falar a verdade, mas eles ditam as regras do lugar, fazem o que é melhor para a vida do seu povo... não tem truque algum! - O vento noroeste começa a soprar forte lá no alto e aparecem as primeiras nuvens escuras no céu.
ABUTRE
- Não? Tem certeza? Pense bem no que cada um faz, comecemos por mim, o abutre... Croááá! - Grunhe e voa para o lado de Jonas, fazendo ciscar o chão enquanto mostra o que fazem os abutres. - Os abutres sempre limpam a sujeira! Não se importam se é apenas um velho ratinho que morreu atrás da moita, um cavalo azarado que caiu num buraco ou até o mais gordo dos reis, infartado enquanto caçava um coelho na floresta: se morreu e ficou no meio do caminho, os abutres limpam! Croááá!
JONAS
- Eca... nojento! - O vento se intensifica e as nuvens escuras cobrem o Sol que, há pouco, reinava sozinho.
ABUTRE
- Viu, só! E ninguém diz sequer um obrigado, Sr. Abutre! ou, quem sabe, um muito bem, Sr. Abutre! Croááá! Nada, nenhum agradecimento. Esta ilha seria um lixão fétido, seria insuportável sem nós, os abutres. De todos os animais desta ilha o abutre é definitivamente o mais nobre, pois é o único que vê valor em todas as coisas, das mais insignificantes, até as de maior conta.
JONAS
- É, vendo por este lado, é realmente um trabalho essencial... mas os demais também têm papel importante... não é?
ABUTRE
- Hum... Croááá!... Não.
JONAS
- Como assim, não? E os mendigos, e as outras pessoas? Isto, sem falar dos sábios e até dos Iluminados. - O céu já está completamente encoberto. Um trovão surdo é ouvido ao longe, anunciando a tempestade que se avizinha.
ABUTRE
- Os mendigos não fazem nada de bom para ninguém, nem querem, a não ser para eles mesmos. Mas também não fazem mal nenhum, ao contrário, são muletas para certas almas pecadoras... Croááá! (Grunhe, dando voltas ao redor de Jonas) Já os sábios, ahh... estes são espertos demais! Usam toda a sua habilidade, toda a sua astúcia no uso das palavras para aplacar o sofrimento alheio. Eles usam a carência das pessoas e a sua necessidade de afeto, enfim... abusam das suas necessidades básicas para tirar proveito delas.
JONAS
- É exatamente isso o que o Grande Inquisidor fazia (relembrando as ladainhas que ouviu na praça do coreto), os sábios não são nada úteis... a não ser para si próprios.
ABUTRE
- E, finalmente, os Iluminados. Todos fazem tudo o que eles mandam, prendem quem os desobedecem e adulam quem dependem dos seus favores. Croááá! - Dá as costas a Jonas e volta para o seu galho.
JONAS
- Mas as pessoas votaram neles, eles foram escolhidos por serem os mais capazes, bem, isso é o que eu acho.
ABUTRE
- Capazes? Por que algumas pessoas receberam mais votos do que outras? Esses Iluminados não passam de mendigos egoístas, vendendo favores, bajulando e enganando as pessoas em troca de votos para mais uma eleição, croá... (grunhe baixinho, meio deprimido em acabar com as ilusões de Jonas) depois, ficam por aí, desfilando como sábios, enquanto tiram tudo das pessoas... que ainda agradecem. - Jonas permanece em silêncio, olhando para o vale lá em baixo, melancólico.
JONAS
- Eu queria que as coisas não fossem assim, será que isso é possível? - Brrr-buuum!!! Os céus atroam e o tempo fecha de vez. Uma fina chuva começa a cair sobre a ilha.
ABUTRE
- Oh, sim, existe... Croááá! - Grunhindo, mas agora, de alegria, balançando a cabeça positivamente. A resposta do abutre é como um facho de luz que ilumina a tristeza no meio do temporal. Jonas pergunta novamente:
JONAS
- Um lugar onde as pessoas fossem livres para sonhar, para buscar a felicidade por conta própria? Onde todos pudessem produzir sem ter que pedir permissão para uma autoridade que não produz nada e que ainda quer dizer como as outras pessoas devem viver as suas vidas?
ABUTRE
- Você gostaria de ver? De ir até este lugar? A pergunta pega Jonas de surpresa, que arregala os
olhos.
JONAS
- Sim, sim!!! Eu gostaria muito! - Responde entusiasmado, surpreendido pela oferta maluca
da ave. O abutre desce de sua árvore e vira de costas para Jonas, batendo as suas asas um par
de vezes para tirar o excesso de água da chuva e lhe oferece as costas, para que suba.
ABUTRE
- Vamos... Croááá! Suba, que eu te levo até lá. - Jonas hesita, pensando por um momento em
toda aquela maluquice mas aceita a oferta. Sobe no lombo do abutre que bate as suas grandes
asas e alça voo, deixando a ilha de Corrumpo para trás.
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